CRÍTICA | Nickel Boys, de RaMell Ross (Idem, 2024)
- Henrique Debski
- 28 de fev.
- 4 min de leitura
Em Nickel Boys, somos colocados na pele dos protagonistas a partir de uma câmera subjetiva, para vivenciar uma dolorosa jornada em busca de liberdade.

É intrigante pensar que, nas mãos de qualquer outro cineasta que não RaMell Ross, a adaptação cinematográfica do romance Nickel Boys, de Colson Whitehead, bem poderia ter sido apenas mais um filme em meio a tantos, sem uma grande característica que o destacasse de outros parecidos. É lógico que o mar de possibilidades do “e se...” é praticamente infinito, mas a escolha do diretor em filmar sua narrativa em primeira pessoa, através de uma câmera subjetivas, sob o olhar dos personagens, traduz de maneira muito mais visceral a jornada perturbadora de seus protagonistas, Elwood e Turner, durante a estada no reformatório Nickel, para jovens em conflito com a lei.
Em um primeiro momento, é de causar estranhamento acompanharmos passagens da infância de Elwood. Demoramos alguns instantes para compreender que estamos enxergando o mundo através de seus olhos, a partir de uma câmera baixa e focada nos detalhes, vivenciando experiências familiares na posição de uma criança negra em um país no ápice da violência racial, com os Estados Unidos da década de 1960. São os detalhes sensíveis desses momentos, escolhidos a dedo pelo roteiro de Ross e Joslyn Barnes, que nos permite compreender uma boa criação pela avó, adoravelmente interpretada por Aunjanue Ellis-Taylor, e uma constante dedicação aos estudos e ao conhecimento por parte do personagem que, por um infortúnio do destino – e um Judiciário grosseiro e intolerante – o faz chegar ao Nickel.
No local, a distinção entre rapazes brancos e negros já fica escancarada pelo tratamento concedido aos novos integrantes logo na primeira cena, em uma diferenciação voraz que vai desde a liberdade no local até as próprias vestimentas e atividades desempenhadas. As regras às quais Elwood se submete, de começo, parecem revelar um interesse na elevação do caráter humano dos internos, mas pouco a pouco vão se descontruindo quando percebemos, junto a eles, que, no fundo, a instituição Nickel, ao menos para ele e seus colegas, é apenas uma prisão, e até mesmo um campo de trabalhos forçados, disfarçado com uma face amigável.
A sensação constante é da inexistência de uma progressão no ambiente, que os “níveis” para se formar na Nickel, os méritos e as possibilidades de sair de lá, como são vendidas, estão propositalmente distantes, em uma dinâmica que lembra um misto de quartel militar com, novamente, uma prisão, no denominador comum da inexistência de liberdade.
Esse sentimento de clausura, que sentimos como se estivéssemos na pele dos personagens, através da câmera subjetiva, em primeira pessoa, se reforça nas escolhas da direção de Ross, com criatividade na transição do olhar de um personagem para outro em algumas cenas – em que acompanhamos uma mesma situação sob duas visões, de Elwood e Turner -, e mais ainda na fotografia assinada por Jomo Fray, que opta por uma razão de aspecto mais contida (na proporção 1.33 : 1), justamente para oferecer esse sentimento de aprisionamento nas diferentes fases da vida do protagonista, desde a segregação, quando criança; passando pela institucionalização, no Nickel; e se encerrando em sua maioridade e vida posterior, ainda sob os efeitos do que viu e sentiu enquanto era adolescente, algo indescritível, e que o acompanha para a vida.
São situações às quais se submetem os personagens que extrapolam as noções de humanidade, enquanto adolescentes, em sua maior parte desafortunados, sem perspectivas em meio a um sistema punitivista e discriminatório baseado exclusivamente na cor da pele. Ross, nesse aspecto, é cuidadoso na forma como as explora para evitar uma abordagem fetichista, exageradamente dramática e beirando aquilo que se chama de “pornografia da dor” (como fez Antoine Fuqua em Emancipação, há alguns anos, com uma pitada de mal gosto, ainda que em um filme de ação razoável).
Mais ainda, as chances para exposição às autoridades dessa verdade, de violência e desonestidade por parte dos administradores da instituição, vêm naturalmente acompanhada de uma desconfiança por parte do próprio Estado em relação às palavras dos internos (por efeito da injustiça da segregação, e por serem adolescentes ansiando por liberdade), e mais ainda, pelo receio da retaliação – algo bastante discutido nos momentos finais, na revelação de eventos que, a certo modo, dialogam, apesar de todas as diferenças entre as obras e recortes históricos, com o documentário Sugarcane, dirigido por Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie, também indicado ao Oscar nesta temporada.
Com isso, RaMell Ross encerra Nickel Boys de modo a deixar um gosto agridoce ao espectador. Não por demérito, pelo contrário: com tanta sensibilidade, sua direção, focada em uma perspectiva quase única, nos permite sentir a austeridade daquelas vidas, naqueles dias difíceis onde não é possível notar a passagem do tempo e, assim como foi para Elwood e Turner, durante mais de duas horas é capaz de nos alienar do mundo real, em um drama doloroso, mas incrivelmente realista – e sobretudo, necessário.
Avaliação: 4.5/5
Nickel Boys (Idem, 2024)
Direção: RaMell Ross
Roteiro: RaMell Ross e Joslyn Barnes, adaptado de Colson Whitehead (livro)
Gênero: Drama
Origem: EUA
Duração: 140 minutos (2h20)
Disponível: Prime Video
Sinopse: A história da poderosa amizade entre dois jovens adolescentes negros que enfrentam juntos as provações angustiantes de um reformatório na Florida, em plena década de 1960. (Fonte: TMDB - Adaptado)
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