24º TRIBECA FILM FESTIVAL | Happy Birthday, de Sarah Goher (Idem, 2025)
- Henrique Debski
- 24 de jun.
- 4 min de leitura
A partir do olhar de uma criança, Happy Birthday explora a crueldade nas relações de trabalho do Egito contemporâneo.

Em um primeiro momento, pensei que Happy Birthday poderia ser apenas mais um filme dentre tantos que abordam as relações de emprego e subemprego sob a perspectiva das diferentes classes sociais, em uma espécie de “embate” social entre o patrão e o empregado. É, no sentido temático, algo muito parecido com o que assistimos, há uma década, no excelente drama brasileiro de Anna Muylaert Que Horas Ela Volta, com um olhar à protagonista, Val, funcionária doméstica de uma família rica em São Paulo, lidando com a chagada do Nordeste de sua filha adolescente, Jéssica, para prestar o vestibular e estudar na cidade.
Porém, apesar da temática se manter, Happy Birthday estabelece um cenário mais cruel e um ponto de vista diferenciado. Ainda que o protagonismo seja assumido por uma funcionária doméstica, Toha, ela é apenas uma criança de 8/9 anos de idade, amiga da filha da patroa, Nally, e compreende seu tempo na residência como uma espécie de brincadeira, imaginando auxiliar a patroa nos afazeres do dia-a-dia, e sentindo-se como parte da família. Ainda que hajam elementos de submissão da protagonista em relação aos demais moradores da residência – a própria Nally, a mãe, e patroa, que está passando por dificuldades financeiras em razão do divórcio, e a avó -, ela não os percebe ou compreende seus verdadeiros efeitos, do trabalho infantil e mesmo análogo à escravidão (não há como saber o acordo da patroa com a mãe de Toha).
Acostumando-se, de maneiras grosseiras, a comportar-se como uma funcionária (sendo, por exemplo, instruída a grosso tom a não se intrometer nas conversas), a família se aproveita dessa ingenuidade, e de certa maneira com uma falsa preocupação – sempre mais em relação a si do que de fato com a garota – para que trabalhe limpando banheiros, fazendo café, dentre outras atividades.
Quando com Nally, porém, Toha sente-se como uma igual. Ainda que o sentimento não seja totalmente recíproco, enquanto a filha da patroa possa talvez compreender, em razão da mãe e avó, elementos da real relação ali existente, suas brincadeiras, inocentes, tornam-se igualitárias enquanto dois seres humanos crescendo juntos.
Essa realidade, porém, cai por terra à protagonista em menos de um dia, quando auxilia a família na arrumação da casa para a festa de aniversário de Nally, mas não é convidada, e mais, é expulsa da residência pelo dia quando sua irmã a busca para que não apareça na festa. A jornada que se sucede é de uma desconstrução, de Toha, sobre a própria realidade, da vida que leva, na medida em que sua mãe não sabe, ao certo, sua data de nascimento, nunca comemorou sequer um aniversário, e nem mesmo possui roupas próprias, sendo que todas as suas peças são compartilhadas com os irmãos e irmãs.
Nesse ambiente revoltante aos olhos de que o vê de fora, de um Egito arcaico, em pleno século XXI – que bem poderia ser o Brasil ou qualquer outro país –, a direção de Sarah Goher muito habilmente sabe trabalhar o olhar de Toha para a realidade em que se insere. Enquanto, durante o filme, acompanhamos o ponto de vista de uma criança, que acredita estar brincando e se divertindo ao mesmo tempo que perde sua terceira infância trabalhando ilegalmente, nós, espectadores adultos, conseguimos compreender aquilo que se passa em sua vida, em uma completa ausência de dignidade. As broncas que leva e mesmo o rebaixamento dentro da residência a colocam em um patamar adulto sem que ela mesma perceba.
Tal maturidade, inclusive, se solidifica com brilhantismo pelo ato final, no qual a verdade sobre o que acontece na residência, e sua contratação pela patroa, tem a chance de vir à tona. Por um lado, é gratificante ao espectador o sentimento de que talvez todo aquele mal possa ser “retribuído” com a revelação da verdade; mas, por outro lado, é como se assistíssemos à infância de Toha se esvaindo de vez, e em definitivo, muito antes da hora. Essa escolha de fixar na infante o ponto de vista é justamente um dos elementos que nos faz torcer pela personagem, e se encantar por sua personalidade, como se estivéssemos em sua pele, sentindo aquilo que sente (a cena final é claro demonstrativo disso), ainda mais quando a atriz Doha Ramadan nos encanta com um trabalho verossímil e que exala sinceridade.
O pensamento que fica é o de que somos frutos de nossa criação, da qual carregamos valores, muitas vezes sem nem percebermos. Nally já demonstra, ao longo da narrativa, elementos desse ciclo, que não são culpa dela, mas sim da mãe e da avó pelo que permitem acontecer. Talvez Rosseau não estivesse errado ao final de contas, enquanto considera que o homem nasce bom [talvez neutro, puro, como a maioria das crianças – acréscimo meu], mas a sociedade o corrompe.
Avaliação: 4/5
Happy Birthday (Idem, 2025)
Direção: Sarah Goher
Roteiro: Sarah Goher e Mohamed Diab
Gênero: Drama
Origem: Egito
Duração: 95 minutos (1h35)
24º Tribeca Film Festival (International Narrative Competition)
Sinopse: A jovem funcionária doméstica Toha, de oito anos, faz de tudo para garantir que sua melhor amiga Nelly, filha de sua rica patroa, tenha uma festa de aniversário bem-sucedida, até que percebe não ter sido convidada para o evento, em uma narrativa que explora as relações de trabalho e classes sociais no Egito contemporâneo.
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