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16º FESTIVAL CINEFANTASY | Quando o Sangue Flui, de Cainã de Paulo e Pedro Valle (Idem, 2025)

  • Foto do escritor: Henrique Debski
    Henrique Debski
  • 13 de set.
  • 4 min de leitura

Em uma homenagem ao cinema Boca do Lixo, Quando o Sangue Flui usa vampiros para refletir sobre as relações entre passado e presente.


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Neste ano de 2025, tem sido comum ao cinema nacional independente mais do que um olhar temático para o passado, mas também formal. Na esteira de referências e homenagens ao cinema “Boca do Lixo” dos anos sessenta, o vencedor da mostra Olhos Livres na 28ª Mostra de Tiradentes, Deuses da Peste, em muito resgatou tal estética para uma produção experimental que explora o contexto político brasileiro das eleições de 2022.

 

Agora, em sua première no 16º Festival Cinefantasy, a independente comédia de horror vampiresca Quando o Sangue Flui vai além, ao abraçar, de corpo e alma, a estética “Boca do Lixo”, em uma narrativa que, a partir do casal protagonista, demonstra um olhar saudosista ao passado sob as lentes do presente, banhado a muito sarcasmo e comentários críticos e políticos a todo instante, transcendendo décadas e gerações de um Brasil em constante mudança.

 

Trata-se de um filme que se orgulha do cinema brasileiro sessentista, que demonstra saudade da ousadia de Sganzerla, da freneticidade de um thriller verborrágico, de uma provocação constante de forma explicitamente “disfarçada” a fim de escapar da censura, dessa sagacidade de outrora, que se readaptou, atualmente, de outras maneiras. Seu casal de vampiros, vividos por Kauã Rodriguez e Marina Lessa Trindade, são autoconscientes em relação aos tempos em que vivem, e mais ainda ao carregarem as memórias daquilo que viveram. Enquanto buscam por prazer, entre o sangue de suas vítimas e o trisal que formam enquanto as atraem para seu luxuoso apartamento em Ipanema, os personagens escrevem proza e poesia como forma de registrar a vida que levam, entre o desfrutar da beleza e a transformação do mundo, e o sentimento de que cada vez mais se distanciam da humanidade que ainda possuem, beirando uma verdadeira crise de identidade.

 

Há um dilema em tela, sobre o que pensam acerca de si – se mais humanos ou se mais criaturas sobrenaturais -, e o quanto de cada um é parte integrante da própria identidade. A paixão ardente dos vampiros Claudie e Monique vai muito além da mera constituição, juntos, de um casal, mas transborda pela tensão sexual com a qual os diretores Cainã de Paulo e Pedro Valle muito eficientemente os filmam, e mais ainda se debruçam e complementam entre as atividades que desempenham em conjunto, como uma entidade única, composta por duas pessoas completamente diferentes, mas que se completam de maneira ideal.

 

Tudo se torna mais evidente com o ingresso de Júlio, o exagerado personagem de Sérgio Mascouto, que atua não apenas como uma antítese ao casal de vampiros, mas também uma força provocadora e questionadora de toda uma geração do presente. Enquanto Claude e Monique se apresentam como pessoas que nunca parecem ter saído dos anos sessenta, das vestimentas à forma de falar, e sobretudo à saudade e constantes referências que fazem à época, Júlio é como uma representação da atual geração, do momento contemporâneo, com suas atitudes debochadas, que constantemente geram desconforto até culminar na intensidade dos momentos finais, que encerram essa metáfora do conflito.

 

Apesar da estética descuidada de Quando o Sangue Flui, de amadores a dupla Cainã de Paulo e Pedro Valle nada tem, enquanto transitam pelo ambiente com uma câmera na mão capaz de construir o bom humor a partir da dinâmica estabelecida entre os personagens, a claustrofobia do apartamento em que filmam, as constantes provocações e conflitos que se constroem entre ambos os polos, de vampiros e vítima consentida, à maneira como apontam um olhar aguçado ao estilo de vida do casal, e desconfiado em relação à sua vítima da vez. O ar político não se encontra restrito ao texto, mas se estende principalmente à decupagem, crítica e capaz de se posicionar com relação à mentalidade dos personagens, a partir de uma mise-en-scene que os coloca sempre em contraste ou posições antagônicas, cada vez mais fechadas e sufocantes, beirando uma explosão.

 

Onde se excede, porém, é no exagero como busca trabalhar as suas referências, literárias, cinematográficas, musicais, políticas e sociais, citando nomes, movimentos e obras sem muito a dizer com elas, soando mais como autoafirmação de repertório do que efetivamente uma referência em tela a partir dele. Muito disso é fruto dos diálogos verborrágicos tradicionais ao movimento “Boca do Lixo” ao qual se inspira, que durante a maior parte do tempo se encaixam muito bem à narrativa sendo contada, mas por vezes peca pelo excesso de citações vazias.

 

No mais, entretanto, em Quando o Sangue Flui, a dupla Cainã de Paulo e Pedro Valle abraça com carinho o cinema de Sganzerla, o icônico trabalho da musa Helena Ignez (muito bem referenciada na personagem de Marina Lessa Trindade), no artista de rua briguento vivido por Aramis Trindade, e numa mescla hábil do vampirismo, tensão sexual, cinema queer, humor e Boca do Lixo em um filme independente, de poucos recursos, mas com uma câmera na mão, autoconsciência, ótimas referências, uma equipe dedicada, e, mais importante ainda, boas ideias na cabeça.

 

Avaliação: 4/5

 

Quando o Sangue Flui (Idem, 2025)

Direção: Cainã de Paulo e Pedro Valle

Roteiro: Cainã de Paulo e Pedro Valle

Gênero: Thriller, Comédia, Terror

Origem: Brasil

Duração: 105 minutos (1h45)

16º Festival Cinefantasy

 

Sinopse: Em Ipanema, um casal de vampiros seduz suas vítimas com promessas de encontros sexuais por meio de cartas. Mas suas vidas são viradas de cabeça para baixo quando um estranho, fascinado pela ideia da antropofagia, responde a uma dessas cartas, levando a um desfecho inesperado.

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