24º TRIBECA FILM FESTIVAL | Dog of God, de Lauris Abele e Raitis Abele (Dieva Suns, 2025)
- Henrique Debski

- 20 de jun.
- 4 min de leitura
Dog of God debate a influência religiosa sobre a sociedade, em uma animação que mescla terror, fantasia e História, na qual o homem é o verdadeiro vilão.

Menos de três meses depois de surpreendentemente, no melhor dos sentidos, levar a estatueta de melhor animação na cerimônia do Oscar de 2025, a Letônia, sem perder tempo, já retorna aos Estados Unidos, mais precisamente no Festival de Tribeca, com uma nova animação. No entanto, ao contrário de Flow, que transborda delicadeza e sensibilidade, Dog of God chega com outra proposta, igualmente ousada, porém certamente divisível.
Ambientado na região entre a Estônia e da Letônia, em uma religiosa e conservadora Europa do século XVII, o desaparecimento de uma relíquia guardada a sete chaves no interior da Igreja local dá início a uma perseguição de caça às bruxas na comunidade, ensandecida pelos dizeres de um padre egocêntrico que usa das palavras de D’us como pretexto para satisfazer seus próprios interesses, e por vezes anuídas pelo próprio líder político local, responsável por representar a palavra e as vontades do Rei na região.
Sob esse contexto, através da fantasia e mediante a exploração da histeria social, Dog of God, em seu recorte local, faz de sua narrativa uma ilustração perversa de alguns dos momentos mais obscuros da História europeia e também da sociedade, em tempos nos quais a influência da Igreja Católica e da fé sobre as comunidades eram responsáveis por legitimar, à época, atos de pura violência e crueldade desmedida, na busca pelo poder de alguns, que manipulavam o povo de acordo com seus interesses, e até mesmo para enterrar segredos que atentam diretamente as próprias bases da religião e da moral.
Para tanto, a escolha da forma animada pela direção de Lauris Abele e Raitis Abele não apenas pode ter colaborado na economia financeira do projeto – ainda que certamente muito trabalhoso e demorado, em virtude do capricho empregado ao traço e ao próprio estilo como um todo, elaborado em suas cores saturadas e no clima denso daquela antiga vila, condenada desde o princípio pela cegueira a qual é submetida pela influência religiosa –, mas também permitiu uma maior liberdade para que a narrativa pudesse se desprender da realidade e abraçar o terror e a fantasia sem tantos limites, da violência gráfica aos elementos sexuais, frutos do próprio ser humano, em sua forma e natureza mais crua, os quais se engrandecem diante da dublagem atenciosa.
O jogo político, ainda que escondido da população nas sombras das figuras de poder e em seus discursos pomposos sobre céu, inferno e bruxaria, fica muito claro desde o princípio ao espectador por parte da direção, que constrói um tabuleiro pautado em manipulação popular, que brinca, a todo tempo, com a descrença dos antagonistas em relação às próprias palavras, em prol do poder que com elas conquistam. A certo ponto, chega a lembrar até mesmo do excelente The Devils (1971), de Ken Russell, na maneira como transforma mulheres em “bodes expiatórios” pelos personagens de forma a comprovar, artificialmente, seus próprios pontos e intenções pessoais, em críticas sagazes e sem escrúpulos à Igreja Católica, como se a violência e a autodestruição do homem por seus iguais fossem vontades divinas.
A certo ponto, os diversos eventos estranhos que circundam a vila em que se passa o filme começam a se unificar, através da misteriosa figura do “cão de D’us”, o qual ao mesmo tempo que parece beneficiar os interesses dos poderosos, da mesma forma os castiga e os expõe perante à sociedade local em seus segredos mais profundos, manipulando justamente os manipuladores para uma forma de penitência pelos atos que praticam. É quando profana das mais diversas formas símbolos sagrados sem qualquer sentido divino aos antagonistas, os quais apenas os utilizam como instrumentos para a manutenção do poder e a manutenção da cegueira sobre o povo.
Assim, Dog of God provoca seu espectador através do incômodo, não apenas em seu apelo visual intenso, repleto das mais variadas formas de violência, mas especialmente pela maneira como tece críticas ácidas e diretas ao uso da religião como fonte de poder e manipulação de massas. Apesar de situar-se na Europa do século XVII, fenômenos semelhantes também se deram ao longo do tempo nas mais diversas localidades, e, sobretudo, ainda acontecem nos dias de hoje. É questão de um fenômeno comum à sociedade, que se adapta conforme a época, local e as condições sociais, com o filme, assim, usando de tempos passados para, escancaradamente, falar do presente, com o verdadeiro terror sendo a maldade humana, em suas formas mais egoístas.
Avaliação: 4/5
Dog of God (Dieva Suns, 2025)
Direção: Lauris Abele e Raitis Abele
Roteiro: Lauris Abele, Raitis Abele, Ivo Briedis e Harijs Grundmanis
Gênero: Terror, Thriller, Animação
Origem: Letônia, EUA
Duração: 92 minutos (1h32)
24º Tribeca Film Festival (Escape from Tribeca)
Sinopse: A animação, feita em formato rotoscopia, se passa em uma pequena vila profundamente católica no interior da Letônia do século XVII, na qual uma é mulher acusada de bruxaria, e cujo julgamento revela a presença de um lobisomem em meio a comunidade.





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