30º É TUDO VERDADE | Sobre um Herói, de Piotr Winiewicz (About a Hero, 2025)
- Henrique Debski

- 4 de abr.
- 4 min de leitura
Piotr Winiewicz, em Sobre um Herói, conduz uma investigação prática e metalinguística sobre a possibilidade da inteligência artificial substituir os seres humanos no fazer da arte.

Para a coletiva de imprensa e anúncio da seleção oficial do 30º Festival É Tudo Verdade, um dos maiores e mais respeitados festivais de documentários do mundo, creio que não poderia haver escolha melhor do que exibir uma obra como Sobre um Herói, e sua excelente linha inicial, “boa sorte em confiar no filme”.
Não apenas pela temática em si da inteligência artificial, de extrema relevância para o nosso cotidiano, enquanto cada vez mais presentes nas diversas tecnologias das quais temos acesso e que muitas vezes dependemos, mas em especial pela forma como o projeto do cineasta Piotr Winiewicz busca por uma solução – ou ao menos, uma discussão – a uma problemática que frequentemente enfrentamos quando se trata do assunto: as IAs poderão substituir os seres humanos no fazer da arte?
Baseando-se em uma clássica frase do mestre cineasta e exímio documentarista Werner Herzog, Sobre um Herói parte da seguinte afirmação do diretor, proferida em um evento durante o Festival de Sundance de 2016, enquanto promovia seu longa Eis os Delírios do Mundo Conectado (Lo and Behold: Reveries of the Connected World):
“A computer will not create a film as good as mine in 4,500 years” (“Um computador não poderá fazer um filme tão bom quanto o meu em 4.500 anos”).
Ao alimentar uma inteligência artificial, apelidada de Kaspar (em homenagem a O Enigma de Kaspar Houser, 1974), com toda a vasta filmografia de Werner Herzog, um roteiro original foi gerado pela máquina nos moldes de um longa do diretor.
O texto gerado por Kaspar nos leva à pequena cidade industrial de Getunkirchenburg, para, junto de Herzog, investigar um mistério: o que aconteceu com Dorem Clery, e quem o matou? Também com ajuda de inteligência artificial, a voz de Herzog foi reproduzida, e utilizada como a narradora desta jornada, em meio às entrevistas que conduz com os envolvidos, e transita entre os diversos locais que podem revelar a complexidade desta questão.
Nitidamente estamos diante de pura ficção, criada e conduzida com um único intuito de explorar os limites da tecnologia e seus comportamentos enquanto tenta reproduzir trabalhos humanos.
O resultado do roteiro gerado por Kaspar é, na realidade, uma enorme confusão. Apesar de num primeiro momento compreender a existência de um mistério a ser solucionado, e estabelece-lo muito bem, há claramente uma dificuldade em escolher uma linha investigativa para seguir, se é que de fato existe uma. Entre as diversas pistas que descobre sobre a morte de Clery, nenhuma delas é verdadeiramente aprofundada, senão pelo intuito de nos encaminhar para uma conclusão cujas respostas e direções parecem, a todo tempo, inexatas e contraditórias, ao cair do céu nas mãos do narrador, que não precisa se esforçar para em algum ponto atingi-las. E não para por aí, quando a resolução, ao final de contas, está além de cafona, ao apelar para um lado sentimental tosco e artificial.
Ao contrário da maior parte dos outros filmes dos quais já escrevi sobre, em todos esses anos de Cineolhar, Sobre um Herói é um ponto fora da curva quando os defeitos de seu roteiro são, na verdade, a maior virtude do projeto, enquanto provam justamente o ponto que coloca à mesa para discussão, sobre a impossibilidade, no momento, da inteligência artificial substituir os seres humanos.
Fazendo bom uso da atmosfera metalinguística, a direção de Piotr Winiewicz expõe as fragilidades de seu texto ao inserir, sarcasticamente, partes do roteiro na tela como forma de demonstrar a confusão de Kaspar para escrevê-lo, entre numerações erradas das cenas e mesmo nomes dos personagens e diálogos sem nexo.
A prova que se faz é que, no aspecto formal do filme, a inteligência artificial entendeu o estilo de Herzog, ou pelo menos parte dele, na maneira como faz seus documentários – estilo esse que a direção colabora através da atmosfera fantasmagórica construída, pelas sombras escuras e a própria trilha que torna tudo mais denso. Entretanto, como uma máquina que apenas reproduz artificialmente aquilo que já existe, sem necessariamente criar nada, há claramente um fenômeno da incompreensão dos seres humanos como imprevisíveis e seres dotados de sentimentos. Sempre ficamos diante de situações hiper controladas e que não dão valor à imprevisibilidade, tratando as pessoas em cena como espécies de mecanismos que agem de formas roteirizadas para um fim específico. E esse fim é o próprio documentário, cujas inconsistências e inexatidões são justamente a resposta que tanto busca: somos, até então, insubstituíveis em nosso próprio mundo.
Avaliação: 4.5/5
Sobre um Herói (About a Hero, 2025)
Direção: Piotr Winiewicz
Roteiro: Kaspar (inteligência artificial), Anna Juul
Gênero: Documentário, Thriller
Origem: Dinamarca, Alemanha, EUA
Duração: 85 minutos (1h25)
30º É Tudo Verdade (O Estado das Coisas – exibido na coletiva de imprensa).
Sinopse: Depois que um operário local chamado Dorem Clery morre em circunstâncias misteriosas, Werner Herzog viaja para Getunkirchenburg para investigar o crime. O roteiro gerado por IA, treinada pelo diretor, entrelaça entrevistas “reais” com artistas, filósofos e cientistas que refletem sobre a noção de autenticidade e imortalidade na era da inteligência artificial. (Fonte: É Tudo Verdade - Adaptado)





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