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49ª MOSTRA DE SP | Atropia, de Hailey Gates (Idem, 2025)

  • Foto do escritor: Henrique Debski
    Henrique Debski
  • 11 de nov.
  • 4 min de leitura

Em ritmo de desconstrução, Atropia satiriza a cultura militarista norte-americana, e se aproveita da metalinguagem para rejeitar convenções hollywoodianas.


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"A guerra é uma forma de Deus ensinar geografia aos americanos" (atribuída à Mark Twain). A citação inicial de Atropia, apresentada em tela antes do longa começar, é excelente em definir, desde cedo, o rumo de sua crítica à sociedade norte-americana, bem como ao seu aspecto de contracultura, em uma proposta bem-sucedida de descontruir essa base militarista através da sátira social.

 

Mostrando uma cidade árabe no deserto, aparentemente em algum lugar do Oriente Médio, uma situação de caos tem início quando soldados norte-americanos agressivamente entram em conflito com civis locais, frente a movimentações suspeitas, e buscando por rebeldes insurgentes que podem atacá-los a qualquer momento. Quando o confronto se inicia, civis são atingidos pela violência das armas disparando no fogo-cruzado, e veículos explodindo em chamas, uma cena sanguinolenta que pode chocar o espectador desavisado sobre os horrores da guerra. Tudo isso até soar uma sirene, e descobrirmos que nada passa de um treinamento militar, em uma instalação do exército norte-americano nos arredores de Las Vegas, com o cenário falso de uma cidade árabe, no fictício país Atropia, repleto de figurantes, utilizada para acostumar soldados ao campo de batalha que enfrentarão quando forem enviados ao Iraque.

 

Na contramão de acompanharmos o treinamento desses soldados para a guerra, porém, o longa de Hailey Gates segue novamente para outro rumo, ao destinar sua atenção à quem nunca é o centro das atenções em histórias como essa: os figurantes e pessoas por detrás daquele cenário, que os confere a autenticidade necessária para que o treinamento seja bem-sucedido. A protagonista Fayruz, uma aspirante a atriz, e figurante no país Atropia, sonha trabalhar em Hollywood, e busca por uma oportunidade de ter seu trabalho reconhecido.

 

Entre suas falhas tentativas de incorporar uma cultura que não lhe pertence – afinal, ela não nasceu no Iraque, e muito menos é de origem árabe, como costuma dizer –, a todo tempo se esforça para colaborar na máxima autenticidade daquele local. Acontece que o ambiente, e os gestores por detrás da cidade, pouco se importam com tudo isso.

 

A direção de Hailey Gates constrói um ambiente de opressão no entorno dos figurantes e das pessoas que trabalham em Atropia. Como uma verdadeira cidade do Oriente Médio, a água é escassa, assim como certos recursos, utilizados internamente como moedas de troca – cigarro, roupas e outros itens. Se num primeiro momento poderíamos enxergar aquela cidade como um mero campo de treinamento realista, na medida em que o filme avança passa a se mostrar como uma prisão à personagem que, no fundo, apenas deseja liberdade.

 

Tanto esse desejo se manifesta dentro dela que não demora muito para engatar em um relacionamento “proibido” com outro personagem da cidade – um veterano de guerra, responsável por interpretar o líder dos insurgentes, e servir de constituir a ameaça que os soldados enfrentarão em sua estada no local. Na medida em que se conhecem, abrem as próprias feridas uns para os outros de forma a evitar um sentimento de solidão, e sempre, de alguma maneira, trabalhado no entorno de uma correlação entre Atropia, o Iraque e a guerra, como talvez a única coisa da qual entendam os personagens de fato, ainda mais naquele contexto, porém de maneiras distintas.

 

Toda essa relação se constitui através de mentiras e meias-verdades, como autoafirmações da própria existência e identidade, e explora, por meio de um olhar apaixonado entre Alia Shawkat e Callum Turner, as escalas de poder daquele cenário, e na dinâmica que há entre eles, o estresse pós-traumático aos soldados, o “vício” na guerra e na adrenalina, na vontade de sempre querer voltar ao campo de batalha.

 

E ao mesmo tempo que se aprofunda nesses elementos, Gates também propõe uma grande crítica a toda a cultura norte-americana, sobretudo militarista. Ao mostrar o nível dos soldados em campo de batalha, incapazes de sequer vigiar reféns ou montar estratégias eficazes, e desde cedo tratando os civis, em seu próprio país, com uma crueldade colonizadora, vê-se que não existe seriedade por nenhuma das partes retratadas em efetivamente fazer de Atropia um ambiente sério, que realmente funcione, ao ponto de os próprios líderes militares desacreditarem no potencial dos próprios subordinados, os enxergando meramente como números.

 

Dessa maneira, com algumas boas reviravoltas e senso de humor constante, Atropia vai muito além de apenas uma sátira à cultura norte-americana, e ao próprio cinema de guerra do país, ao internalizar tal proposta no próprio desenrolar da narrativa, para também brincar com as convenções de Hollywood, rejeitando, por exemplo, os típicos finais felizes; e até na escalação do elenco, cuja personagem que nada tem em relação à cultura árabe é filha de um iraniano (a excelente Alia Shawkat), e o personagem “mais americano” do filme é, na verdade, interpretado por um ator britânico (Turner, e o excelente sotaque americano empregado ao seu personagem). No fim, todo o exercício militar complexo que o longa estabelece desde o princípio com certo rigor vai aos poucos se desconstruindo, a fim de provar a desnecessidade de um estado de guerra constante, e ao próprio descaso na preparação daqueles que darão suas vidas por algo que, na maior parte das vezes, mal sabem o porquê; da mesma maneira que a protagonista, ao busca por um propósito em sua vida, reflete sobre as razões para trabalhar naquele lugar que não a valoriza, ao passo que, em poucos meses, dará luz a uma criança no mundo – até onde vale a pena o esforço?

 

Avaliação: 4.5/5

 

Atropia (Idem, 2025)

Direção: Hailey Gates

Roteiro: Hailey Gates

Gênero: Comédia, Drama, Thriller

Origem: EUA, Reino Unido, Itália

Duração: 104 minutos (1h44)

49ª Mostra de São Paulo

 

Sinopse: Fayruz é atriz em Atropia, um país fictício criado por militares dos EUA para um treinamento imersivo. Ainda que tenha muito orgulho de seu trabalho, Fayruz acredita que esse papel é apenas o trampolim para uma carreira brilhante em Hollywood. Quando ela conhece Abu Dice, um experiente soldado que interpreta o papel de um insurgente, o romance que surge entre eles rapidamente se torna uma ameaça às suas respectivas ambições, questionando a lealdade aos militares e o propósito de Atropia.

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