49ª MOSTRA DE SP | Cyclone, de Flavia Castro (Idem, 2025)
- Henrique Debski

- 7 de nov.
- 3 min de leitura
Cyclone inspira-se na vida da dramaturga Maria de Lourdes Castro Pontes, e explora os desafios de uma mulher a frente de seu tempo em uma época em que viviam aprisionadas pela própria sociedade.

Nem todos os dramas biográficos precisam necessariamente seguir à risca os fatos da realidade. Desde que bem estruturados, e esclarecendo desde o princípio a abordagem pretendida, de maneira livre em relação à história real, o céu torna-se o limite na condução da narrativa. Não que seja necessário, como uma regra, diferenciar a todo tempo o fato da ficção, mas é de uma relação honesta para com o espectador que se garante, de antemão, uma espécie de cumplicidade que favorece a imersão.
Livremente adaptado das obras literárias “O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo”, de Oswald de Andrade, e “Neve na Manhã de São Paulo”, de José Roberto Walker, Cyclone narra a história da dramaturga Dayse Castro, uma operária que, fora do expediente, trabalha no Teatro Municipal de São Paulo ao lado de Heitor Gamba, famoso diretor de teatro, que sempre acaba por levar os créditos pelas obras escritas, em sua maioria, por Dayse, escondida por detrás da coxia, e da figura do artista.
Inspirando-se na vida da igualmente dramaturga e operária Maria de Lourdes Castro Pontes, a direção de Flávia Castro é enfática na maneira como destina boa parte de sua atenção às formas de violência enfrentadas pela protagonista, enquanto uma mulher, muito à frente de seu tempo, tentando posicionar-se, sem sucesso, em uma sociedade machista e conservadora, como a São Paulo do final dos anos 1910, que não a valoriza, e pelo contrário, constantemente a subjuga em razão do sexo.
No limite da exaustão, e em um momento decisivo, o roteiro de Rita Piffer delimita temporalmente a narrativa em uma oportunidade de transformação, através da possibilidade de a personagem sair do Brasil, e estudar na França durante alguns anos, com uma bolsa de estudos. No entanto, como tudo torna-se uma verdadeira provação na vida de Dayse, uma imensa quantidade de obstáculos encontram-se em seu caminho, desde questões burocráticas, puramente pautadas em formas de discriminação endossadas pelo Estado à época – revelando especialmente legislações e procedimentos notavelmente preconceituosos, como a necessidade de autorização do marido ou pai para viajar – até consequências das relações as quais se submetia para seguir com o sonho de trabalhar com teatro, e ver seu nome impresso no cartaz de peças, assinando como roteirista.
Nesse grande mar de complicações, na forma de uma verdadeira bola de neve que aumenta gradativamente, enquanto o tempo se esgota, a direção explora com habilidade esse cenário de calamidade na vida da personagem, seja a partir do cuidadoso trabalho na ambientação de uma São Paulo ainda dominada por homens, com extrema atenção por parte da direção de arte, dos figurinos aos objetos de cena e caracterização das grande ruas da época, à própria maneira como se permite a certa experimentação formal, imprimindo na fotografia os sentimentos da protagonista por meio das constantes mudanças na cor e suas tonalidades, entre o quase incolor preto e branco e a vivacidade do colorido, ou no cambalear da câmera em específicos momentos fisicamente dolorosos.
A partir da atuação vivaz e sentimental de Luiza Mariani, uma das idealizadoras do projeto, Cyclone explora a realidade encontrada por uma mulher abertamente livre em uma época, e sociedade, em que isso não era um direito conferido às pessoas do sexo feminino. É um retrato que, embora parcialmente fictício, se esquiva das soluções óbvias, dos desfechos trágicos e do drama exagerado, enxerga com compaixão sua protagonista, e traça paralelos com o presente a partir de uma representação do passado. Mais do que isso, traz à luz e ao conhecimento do público uma importante figura da dramaturgia brasileira, retratada em livros e textos por grandes autores da época, e hoje reconhecida – e eternizada – através do cinema.
Avaliação: 4/5
Cyclone (Idem, 2025)
Direção: Flavia Castro
Roteiro: Rita Piffer
Gênero: Drama
Origem: Brasil
Duração: 100 minutos (1h40)
49ª Mostra de São Paulo
Sinopse: São Paulo, 1919. Desafiando todas as regras, uma jovem operária e dramaturga conquista uma cobiçada bolsa para estudar teatro em Paris, mas logo descobre que o maior obstáculo para realizar seu sonho é ter nascido em um mundo onde as mulheres nem sequer são donas do próprio corpo.





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