49ª MOSTRA DE SP | Dracula, de Radu Jude (Idem, 2025)
- Henrique Debski

- 22 de out.
- 4 min de leitura
Radu Jude brinca e experimenta com o Conde Drácula, em uma sátira social que traça um paralelo entre o histórico do personagem e as mudanças da própria Romênia.

Ao se deparar com uma versão de Drácula, adaptação da consagradíssima obra de Bram Stocker, assinada por um cineasta como Radu Jude, naturalmente pode-se esperar qualquer coisa, exceto por um longa convencional, como tantos outros, de um dos personagens mais conhecidos da literatura e do cinema. Afinal, não é de hoje que cada vez mais o diretor tem-se vendido com um cinema provocativo, tanto sob pontos de vista formais, através de características experimentais, como sob os eixos temáticos, em sátiras sócio-políticas intensas, e extremamente ácidas.
Na esteira desse cinema, seu interesse em Drácula passa longe de uma mera readaptação da obra de Stocker. Pelo contrário, através de uma narrativa segmentada, em pequenas “esquetes” e histórias independentes, Radu Jude propõe uma exploração do personagem sob suas diversas faces, desde a publicação do longa original, de sua primeira aparição nas telas dos cinemas, e até sua popularização no imaginário da cultura popular, acompanhando as evoluções sociais, e um olhar ensaístico para a posição de Drácula em cada momento da História, da Romênia ao mundo como um todo.
A primeira coisa que Jude pensa, na verdade, antes de chegar ao personagem título, é lembrar-se de sua inspiração histórica romena, a partir da polêmica figura de Vlad III, mais conhecido como Vlad, o Empalador (1431-1476), a figura real que deu origem aos mitos, e posterior construção, de Conde Drácula (que não à toa é nomeado como ele). Ao mesmo tempo que faz um pequeno apanhado sobre essa importante inspiração, que também serve como base para a caracterização do personagem no filme, vivido por diversos atores distintos ao longo dos segmentos, assim também já introduz a outras das temáticas centrais, sobretudo o uso da inteligência artificial.
A partir de um roteirista em crise criativa – ou talvez apenas uma enorme preguiça de escrever, diga-se de passagem –, o diretor nos apresenta ao nosso guia durante essa imersão experimental que propõe, em quase três horas, sobre o personagem-título. A partir da manipulação de algumas ferramentas de inteligência artificial, também igualmente satíricas, o personagem sugere diretrizes e solicita filmes aos programas, que o entregam digressões, nas quais Drácula é colocado em diferentes contextos.
Nesse sentido, em um momento acompanhamos uma colagem de propagandas fictícias baseadas em passagens de Nosferatu (o que dialoga com outros de seus projetos, como o recente Eight Postcards From Utopia, de 2024); em outros, brinca com o aspecto hollywoodiano do personagem, na tensão sexual, nos vampiros sedentos por mais do que apenas sangue, de maneira exagerada (e acaba, por consequência, satirizando, ainda que indiretamente, projetos recentes, como a versão de Drácula assinada por Luc Besson); e mesmo chega, em dada oportunidade, filmando a sua própria versão, de maneira resumida, e igualmente absurda, sob um aspecto teatral e improvisado (com direito a momentos dignos de um episódio de Scooby-Doo).
O engraçado é que os personagens dessas digressões, vividos quase sempre pelo mesmo elenco, acabam transbordando-se em hábitos e características de um segmento para outro, enquanto, sem que talvez percebamos, convertem-se em alegorias quanto à própria sociedade, romena e mundial. Esse próprio elemento local é bastante explorado sobretudo de um ponto de vista histórico, e estabelece diálogos entre a Romenia do passado (tanto fascista quanto socialista), e a do presente, na herança de ambos os regimes e a formação estatal do caótico presente.
E o melhor é que Radu Jude nunca deixa o senso de humor absurdista de lado, sempre nos surpreendendo com elementos grotescos e até de gosto duvidoso, com piadas sexuais (constantes), de zumbis fascistas, vampiros mascarados, robôs nazistas e até a fuga de um casal de atores fracassados de um trabalho análogo a escravidão, no maior, e melhor, segmento do filme.
Mas como um filme moldado através de segmentos, é normal que uns acabam se sobrepondo a outros, e isso se torna muito evidente quando a obra, em suas quase três horas de duração, muda da água para o vinho, e do vinho para a água, em um piscar de olhos. A experimentação, e uso da IA para os efeitos e como forma de diminuir os custos da produção soa engraçada em um primeiro momento, mas vai perdendo a força e a graça no decorrer da projeção, ao insistir sempre nas mesmas piadas, trabalhadas das mesmas maneiras. E com a existência de segmentos pouco relevantes, ou que se distanciam da temática central, este Drácula aos poucos fica cansativo.
Ainda assim, apesar dos excessos, Radu Jude atinge seu maior objetivo: desconstruir tanto Vlad, o Empalador, quanto o Drácula da cultura pop, na criação de um ensaio reflexivo sobre a transformação de ambos os personagens histórico-culturais ao longo do tempo, em uma conversão da figura temida em uma criatura mitológica já trabalhada de diversas maneiras, em diversos países e pautadas nas mais variadas culturas. É uma maneira tão peculiar quanto original de propor as reflexões, com a descontração do humor, a experimentação formal, e o estabelecimento de relações entre passado e presente, em visões político-sociais, a partir da cultura romena – e do ocidente como um todo –, e sob o olhar de uma de suas principais figuras mitológicas mundiais.
Avaliação: 3.5/5
Dracula (Idem, 2025)
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude
Gênero: Comédia
Origem: Romênia, Austrália, Luxemburgo, Brasil
Duração: 170 minutos (2h50)
49ª Mostra de São Paulo
Sinopse: O que acontece quando um jovem e curioso cineasta desafia a sua criatividade com as possibilidades ilimitadas de uma falsa IA? Uma mistura surpreendente de várias histórias, do passado e do presente, sobre o mito original de Drácula: uma caça a vampiros, zumbis e Drácula interrompendo uma greve, um conto de ficção científica sobre o retorno de Vlad, o Empalador, uma adaptação da primeira novela romena sobre vampiros, um romance trágico, um conto popular vulgar, histórias kitsch geradas por inteligência artificial... e muito mais!





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