49ª MOSTRA DE SP | Fiume o Morte!, de Igor Bezinovic (Idem, 2025)
- Henrique Debski

- 25 de nov.
- 4 min de leitura
Entre o contra-arquivo e a metalinguagem, Igor Bezinovic experimenta com o documentário em Fiume ou Morte!, desconstruindo a figura de Gabrielle D’Annuzio durante sua ocupação de Fiume.

Outrora, até pouco depois da Primeira Guerra Mundial, parte da atual cidade de Rijeka, na Croácia, tinha outro nome: Fiume. O território, que ao longo de séculos passou de mão em mão entre governos de francos, austríacos e húngaros, foi palco de um incidente interessante logo após a primeira grande guerra do século XX. Com a derrota da Áustria-Hungria ao final do conflito, tanto os italianos quanto a futura Iugoslávia reivindicavam o território, e enquanto era debatido seu futuro, as negociações foram interrompidas por uma força nacionalista que invadiu e tomou a cidade, liderada pelas mãos do italiano Gabriele D’Annuzio, que a ela governou entre 1919 e 1921.
Dentro desse recorte estritamente específico, sobre os dezesseis meses da conturbada ocupação da cidade por D’Annuzio, o cineasta croata Igor Bezinovic elege esse momento histórico para explorar, em Fiume ou Morte!, a recriação do passado através das lentes e cenários do presente, reencenando passagens do momento com a interpretação da própria população local, precisamente nos mesmos espaços e ambientes onde se deram os eventos, contando o passo a passo desses dias, sob os olhos do italiano, e também do povo, a partir de registros da repercussão de seus atos por meio de jornais e fotografias da época.
O primeiro passo tomado pelo diretor, na introdução de seu documentário, é uma passagem pelas ruas da cidade com três intenções: a primeira, registrar a quantidade de homenagens que ainda hoje existem à figura em espaços públicos; a segunda, verificar o quanto desse recorte histórico é conhecido atualmente pela população local, especialmente no que gira entorno de D’Annuzio; e, terceiro, buscar por pessoas que se pareçam com a personalidade em questão, ou que apresentem similaridades físicas com outros personagens históricos ao seu entorno, para que possam participar do filme nas dramatizações.
Mantendo um ar de ironia, e o olhar crítico sempre voltado à figura retratada, Bezinovic reúne um elenco constituído especialmente por uma série de homens que, em diferentes segmentos, viverão D’Annuzio e tantos outros em momentos distintos. Em sua maioria, trata-se de não-atores, cujos quais o cineasta fez questão de, vagamente, expor ao espectador a razão para a escolha, de uma semelhança física maior aos personagens, ou mesmo uma habilidade ou hábito, como o conhecimento do antigo dialeto italiano local.
O cenário é a atual cidade de Rijeka, cuja boa parte dos ambientes e locais da época se mantém preservados, de maneira intacta, nos quais o diretor contrapõe as imagens registradas do passado – em fotos, pinturas e gravuras/charges jornalísticas – com sua própria recriação, no presente. É inicialmente uma demonstração de preservação histórica, e, ao mesmo tempo, também uma sátira pelo viés que a todo tempo impõe à essa figura conturbada, que, de tão nacionalista – e igualmente contraditória –, chegou a travar uma batalha de cinco dias contra a própria pátria para assegurar o controle e poder de Fiume, em um momento que nem mesmo a Itália mais a desejava.
Objetivando a desconstrução de um líder fascista que por alguns ainda segue sendo exaltado como herói, a direção sempre demonstra enorme respeito à História e aos seus registros, e usa do cenário presente dessa Rijeka do século XXI para mostrar que, pouco a pouco, a imagem de D’Annuzio vem sendo apagada de um rol dos heróis locais, sendo removidas, paulatinamente, homenagens em nomes de ruas ou estátuas por figuras que realmente representam o povo croata.
Não se trata, em hipótese alguma, de um apagamento histórico, mas a realocação de determinadas figuras para seus devidos lugares dentro da memória local, cedendo espaço para personagens que carregam consigo o real orgulho da população.
Além de tudo, Fiume ou Morte não apenas aproveita a oportunidade para constituir um longa de contra-arquivo da figura de Gabrielle D’Annuzio (que, ironicamente, ainda recebe homenagens no Brasil, como o nome de uma rua em São Paulo), para também explorar a metalinguagem, ao convidar o espectador para participar das etapas de produção do filme, da seleção do elenco até mesmo a reconstrução dos ambientes históricos, como a transformação do que hoje é um salão de beleza no cenário de um bar, onde, há mais de um século, o tirano teria frequentado em inúmeras oportunidades, para debater política, beber e se divertir. É um documentário que vai para muito além de sua proposta de contra-arquivo, e de investigação histórica, ao passo que também oferece uma aula de cinema e experimentação com a linguagem documental.
Avaliação: 4.5/5
Fiume o Morte! (Idem, 2025)
Direção: Igor Bezinovic
Roteiro: Igor Bezinovic
Gênero: Documentário, Comédia, Drama
Origem: Croácia, Itália, Eslovênia
Duração: 112 minutos (1h52)
49ª Mostra de São Paulo
Sinopse: Em 12 de setembro de 1919, cerca de trezentos soldados, liderados pelo extravagante poeta italiano Gabriele D’Annunzio, tomaram a cidade portuária de Fiume, na costa do Mar Adriático Norte, com a intenção de anexá-la à Itália. Durante os 16 meses seguintes, num dos cercos militares mais insólitos já registrados, sua equipe oficial de fotógrafos produziu mais de 10 mil imagens. Um século mais tarde, o cineasta Igor Bezinović, natural de Rijeka (antiga Fiume), na Croácia, reúne cerca de trezentas pessoas para encenar e dirigir uma espécie de lição de história, refletindo sobre o cerco e suas ressonâncias contemporâneas.





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