49ª MOSTRA DE SP | Foi Apenas um Acidente, de Jafar Panahi (Yek Tasadef Sadeh, 2025)
- Henrique Debski

- 16 de nov.
- 4 min de leitura
Em Foi Apenas um Acidente, Jafar Panahi discute a banalidade do mal, e um sentimento de vingança contra o violento regime iraniano – vale a pena retribuir a dor na mesma moeda?

Durante a conversa com o diretor Jafar Panahi após a primeira exibição de Foi Apenas um Acidente na 49ª Mostra de São Paulo, questionado sobre a possibilidade de um aspecto pessoal no longa, como de costume em sua filmografia, o cineasta negou ser o filme necessariamente sobre si. Entretanto, conhecendo sua história, os embates constantes com o regime iraniano através da arte, e suas diversas prisões, é inegável a existência de um pouco de si no projeto, ainda que não se coloque em frente à câmera, como o fizera em outras oportunidades – creio inclusive que tenha sido este o teor majoritário de sua resposta.
Tratando Panahi de seu cinema não como político, mas apenas social, em razão da ausência de uma bandeira partidária ou defesa de ideais específicos de determinado grupo (como assim o definiu ao longo da conversa), seu filme vencedor da Palma de Ouro de 2025 reflete o “depois” na vida das pessoas perseguidas – e torturadas – pelo regime ditatorial de seu país natal, o Irã. Embora de longe pareçam viver suas vidas com tranquilidade, na medida do possível, as marcas deixadas pelo fascismo religioso do país e pela violência do partido ao enxergá-los como traidores enquanto presos exibem cicatrizes psicológicas eternas, na forma de terrores noturnos, crises de pânico, ansiedade, e até mesmo sintomas físicos.
Mas na contramão de um drama sério, tal como nosso Ainda Estou Aqui (o qual foi positivamente citado pelo diretor em diversas oportunidades ao longo da conversa), Foi Apenas um Acidente elege uma veia sarcástica e até cômica para trabalhar a densidade da temática colocada sobre a mesa. A partir de “um simples acidente”, como afirma o título em francês, uma inversão de papéis se estabelece em cena. Ao acaso, os caminhos de um possível interrogador do regime se cruzam com o de um antigo prisioneiro, por ele torturado. Em um primeiro momento, não compreendemos exatamente o motivo para o protagonista se mostrar revoltado e até apreensivo com o sujeito em questão – teria ele atropelado seu cachorro? –, mas após uma situação envolvendo certa dose de violência e posterior diálogo entre eles, entendemos a dimensão da situação em que se encontram.
No entanto, se a proposta de Panahi fosse a de retribuir a violência e brutalidade entre vítima e algoz na mesma moeda, Foi Apenas um Acidente, nesses termos, não passaria de um curta, senão um média-metragem. A dúvida quanto à identidade do sujeito capturado, e o próprio dilema moral, inicialmente em segundo plano, fazem com que a solução para a questão não apenas se torne ainda mais complexa, como acabe envolvendo também outros sobreviventes.
Quanto mais pessoas entram para essa história, especialmente as vítimas do torturador, Panahi passa a trabalhar a maneira como cada personagem lida com o trauma. Enquanto uns tentam abandonar o passado, e se concentrar no presente, outros carregam as cicatrizes dos momentos mais difíceis das próprias vidas entalados na garganta, sentindo-se incapazes de seguir adiante – reagindo às memórias com tristeza, na forma de depressão, ou mesmo com violência.
Com o grande responsável pelas desgraças em suas vidas em mãos, como um monstro caindo no colo de suas vítimas, inicia-se uma discussão sobre o que fazer com o sujeito, se realmente tratar-se do torturador em primeiro lugar – algo que o filme a todo tempo coloca em dúvida, inclusive manipulando nossa própria opinião a respeito.
A reflexão que se propõe a partir da problemática guarda certa relação com a filosofia de Hannah Arendt, e a banalidade do mal. Ainda que um sujeito apenas cumpridor de ordens pelo regime, até onde exatamente poderia ir sua responsabilidade pelos atos praticados – o que cabia a si, e o que não? Na medida em que novos problemas e contratempos surgem em meio a essa decisão que precisarão tomar, o diretor acaba construindo um verdadeiro ensaio sobre humanidade, em sua presença e ausência, frente às duas faces de uma mesma moeda, nessa relação firmada entre o agente estatal e suas vítimas quando presas pelo regime.
Com uma câmera que pouco se move, mas a tudo observa, Panahi direciona a atenção do espectador para longos debates, e diálogos cada vez mais densos, versando sobre os traumas pelos quais foram submetidos os personagens, e o como devem reagir diante da oportunidade que se tem em mãos. É muito desconcertante a maneira como detalham as violências que sofreram, as palavras que ouviram, e jogam ao espectador à imaginação de cenas de horror, de formas físicas e psicológicas.
Ao mesmo tempo, em segundo plano, há também oportunidade para afrontar (ainda mais) os valores retrógrados do regime, em tom de provocação, ao retratar personagens femininas independentes, e muitas vezes sem o uso do ‘hijab’, da mesma forma que questiona as leis locais, e ainda vigentes, que exigem às mulheres a presença de homens para determinados atos, como a entrada para ser tratada em um hospital.
Assim, Foi Apenas um Acidente, de maneira bem-humorada, na medida do possível, e ao mesmo tempo em tom de seriedade, lança um olhar para uma oportunidade de vingança contra um regime igualmente vingativo e violento, porém questiona, e muito profundamente debate, até onde vale a pena reduzir-se ao mesmo patamar, e tornar-se um igual apenas como forma de retribuir a dor – isso ajudaria a fazer com que a própria vida melhorasse, e apagasse o passado? Em um desfecho ambíguo, joga uma dúvida ao espectador, a fim de provocar ainda mais pelo teor de sua obra – que inclusive, apesar de se passar no Irã não restringe o alcance do debate ao país, quando poderia bem se passar em qualquer nação que já experienciou, ou ainda experiencia, o totalitarismo, como o próprio Brasil. Uma obra-prima de Panahi, e de fato merecedor da Palma de Ouro em Cannes.
Avaliação: 5/5
Foi Apenas um Acidente (Yek Tasadef Sadeh, 2025)
Direção: Jafar Panahi
Roteiro: Jafar Panahi
Gênero: Drama, Thriller
Origem: Irã, França, Luxemburgo
Duração: 102 minutos (1h42)
49ª Mostra de São Paulo
Sinopse: O que começa como um pequeno acidente desencadeia uma série de crescentes consequências.





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