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49ª MOSTRA DE SP | Kontinental ’25, de Radu Jude (Idem, 2025)

  • Foto do escritor: Henrique Debski
    Henrique Debski
  • 27 de out.
  • 4 min de leitura

Em uma sociedade conformista, Kontinental ’25 buscar abrir os olhos em relação ao próximo, em uma reflexão sobre a falha capitalista na Romênia do século XXI.


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Ao entrar para assistir um filme de Radu Jude, a única coisa que não podemos esperar é uma narrativa formalmente quadrada, ou minimamente comum, quando construiu seu nome através de um cinema experimental provocativo, absurdista e, especialmente, anticapitalista, sempre traçando paralelos entre passado e presente para trabalhar a Romênia do século XXI sob lentes críticas, enquanto um país que sobreviveu ao fascismo, ao socialismo, e agora encontra-se imerso na ascensão de uma extrema-direita, bastante comum aos seus vizinhos do leste europeu.

 

O que mais surpreende em Kontinental 25 é o como o cineasta deixa de lado o aspecto experimental de seu cinema, e de certa maneira até um pouco de seu típico absurdismo – mas ainda presente, vide o parque de dinossauros dos momentos iniciais –, e aqui busca por um olhar sincero direcionado a uma forma de violência implícita em seu país, voltada às condições sub-humanas das pessoas em situação de rua, e a crise habitacional, com o domínio das construtoras e incorporadoras imobiliárias.

 

Seus minutos iniciais trabalham justamente a invisibilidade das pessoas em situação de rua, enquanto acompanha um homem idoso, que vive na rua, pedindo dinheiro, comida ou trabalho à pessoas por onde passa. É com uma câmera estática que o acompanha em diversos pontos da cidade, bebendo água do esgoto, revirando o lixo, abordando transeuntes, e fazendo suas necessidades à luz do dia, diante da impossibilidade de utilizar um banheiro, nem que seja para tomar banho. Um abrigo até se faz uma opção, mas além de sempre lotados, é perceptível que o personagem, com seu quadro de depressão, valoriza mais a liberdade do que o bem-estar diante dessa hipótese.

 

A partir da chegada da oficial de justiça Orsolya, excelente na pele de Eszter Tompa, no local em que o homem se abriga – a caldeira de um antigo edifício – , para despejá-lo, a fim de cumprir o mandado de “despejo” (talvez até um caso de reintegração de posse), o consequente suicídio do sujeito provoca na personagem, que se torna a protagonista, uma verdadeira reviravolta sobre o mundo ao seu redor.

 

Claramente na proposta de fazer sua própria versão do clássico do neorrealismo italiano Europa ’51, de Roberto Rossellini, Radu Jude converte a Itália do pós-Segunda Guerra na Romênia pós experiências fascistas e socialistas no século XX, ambas fracassadas, encontrando-se, mesmo após décadas de democracia, em amplo estado de desigualdade social, com um governo ineficiente, corrupto, e na ausência de políticas públicas destinadas à dignidade da pessoa humana, ou ao menos destinadas àqueles que vivem nas ruas.

 

Pelo contrário, tudo o que se enxerga é um tremendo conformismo por parte dos componentes da sociedade – entes políticos e da própria população –, e especialmente da prevalência de um capitalismo puramente pautado na “lei do mais forte” (ou “bem-sucedido”), com os renegados às ruas, sobrevivendo a um inverno de graus negativos, e a verões escaldantes.

 

De maneiras similares ao primeiro terço de Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021), o cineasta explora o transitar da protagonista na caminhada pelas ruas de Cluj, enquanto abre os olhos a uma realidade que sempre ignorava. É com sua câmera parada, e posicionada em locais estratégicos, que filma reações genuínas, e diálogos verossímeis da personagem com amigos e familiares sobre aquilo que sente diante da situação que indiretamente deu causa.

 

Esses diálogos, filmados em planos longos e em tomadas únicas, exploram, com boa dose de humor ácido, e de maneira alegórica a partir de seus interlocutores, o olhar de diferentes setores e componentes da sociedade sob a invisibilidade de quem vive nas ruas, em verdadeiras críticas que se encaminham desde a atuação do Estado até, especialmente, o espectador.

 

Pois apesar do clima de gentrificação, e do monopólio das grandes incorporadoras/construtoras sobre os imóveis, que sempre busca captar através da imagem, não é algo que se restringe ao território romeno. Como em outras oportunidades dentro do cinema do diretor, é plenamente possível traçar paralelos entre os comentários que faz acerca de seu país com a realidade brasileira, por exemplo, em questões que em muito dialogam, desde a ineficiência estatal até uma sociedade que fecha os olhos ao próximo (essa última resume todo o contexto atual do mundo, na verdade).

 

E nessa grande crítica ao conformismo, Kontinental ’25 se inspira em elementos do clássico italiano, mas traça outra direção em relação aos rumos e aprendizados de sua protagonista. Não é preciso ser vista como santa por uns para saber que fez a diferença, mas tão somente repensar em sua culpa social por não olhar para o próximo, e fazer sua parte, naquilo que pode e como pode, para ajudar. É uma ideia talvez bastante óbvia, e uma solução sutil, mas que ainda precisa ser dita e reafirmada – e se funcionar, o filme de Radu Jude, para além da reflexão que oferece, certamente terá cumprido seu grande papel.

 

Avaliação: 4/5

 

Kontinental ’25 (Idem, 2025)

Direção: Radu Jude

Roteiro: Radu Jude

Gênero: Comédia, Drama

Origem: Romênia, Suiça, Luxemburgo, Brasil, Reino Unido

Duração: 109 minutos (1h49)

49ª Mostra de São Paulo

 

Sinopse: Orsolya é uma oficial de justiça em Cluj, a principal cidade da Transilvânia. Um dia, ela precisa despejar um homem sem-teto que mora no porão de um prédio. Um acontecimento inesperado cria uma crise moral que ela tenta resolver da melhor maneira possível.

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