49ª MOSTRA DE SP | No Other Choice, de Park Chan-wook (Idem, 2025)
- Henrique Debski

- 9 de nov.
- 5 min de leitura
Alinhado a um cinema anticapitalista sul-coreano, Park Chan-Wook faz de No Other Choice uma mórbida e intensa comédia sobre o desemprego, e os sacrifícios para o reingresso no mercado de trabalho.

Com uma estreia badalada na competitiva do Festival de Veneza deste ano, muito se esperava por certo reconhecimento ao novo trabalho de Park Chan-wook dentre as premiações. Entretanto, não foi o que aconteceu, e No Other Choice saiu literalmente com as mãos abanando. A decepção, porém, não foi duradoura, quando, ainda no mês de setembro, venceu o “International People’s Choice Award” no Festival de Toronto (o prêmio de público para filme internacional), e também o prêmio de direção na seleção competitiva do Festival de Sitges.
Desde os anos 2000 provocando a sociedade sul-coreana a partir de filmes exploradores das mais diversas formas de violência, desta vez Park Chan-wook se aprofundou de vez na onda anticapitalista do cinema de seu país, muito fortalecida após as vitórias de Parasita no Oscar em 2020, e direcionou seu olhar ao mercado de trabalho, na forma do desemprego, e no contexto das demissões em massa de pessoas qualificadas e formadas, ao longo da vida, por uma só empresa – caso dos funcionários exemplares, que por décadas trabalharam no mesmo lugar, e são, da noite para o dia, mandados embora como se nunca tivessem sido importantes ou necessários.
Nesse contexto, a idade é fator determinante para o reingresso no mercado de trabalho. Em ambientes cada vez mais competitivos, por que deveriam as empresas contratar funcionários experientes – e portanto, mais caros – se a juventude oferece uma mão de obra muito mais barata, e, com a energia típica da idade, pode aprender rapidamente? Como se pode perceber, constitui-se aqui um verdadeiro ciclo interminável, pois logo esses jovens, quando envelhecerem, também serão substituídos, e ficarão à deriva de um mercado que não os deseja.
É o momento de vida no qual se encontra o protagonista Man-soo, brilhantemente interpretado por Lee Byung-hun, um pai de família que, demitido da empresa na qual trabalhou durante quase trinta anos, precisa se reinventar para manter o padrão da casa, e sustentar sua família. Desde a introdução, a direção de Chan-wook já estabelece o tom satírico com o qual conduzirá a narrativa, ao apresentar a família em um típico momento de “sonho americano”, realizando, em pleno outono, um churrasco no quintal de casa, com as folhas das árvores caindo, música instrumental suave, e refletindo sobre como são felizes – um cenário prestes a ser ameaçado.
Na contramão de um drama convencional, a escolha da narrativa pelo aspecto absurdista é como dar ouvidos aos pensamentos intrusivos – “e se eu eliminar a concorrência?”.
Ao levar a sério uma ideia como essa, a imagem estabelecida do protagonista como um homem bom, incapaz de fazer mal a uma mosca, se desconstrói perante o desespero, e a câmera de Chan-wook, ao segui-lo nessa jornada, nos transforma, enquanto espectadores, nos cumplices das atrocidades que planeja cometer para sobreviver na sociedade capitalista. Mais do que isso, não se resume apenas ao padrão de vida, mas também ao significado daquela casa ao protagonista, enquanto representante de suas únicas memórias de infância. É algo que o cineasta estabelece com cuidado, e posiciona habilmente desde cedo, para justificar, ao menos psicologicamente, as decisões tomadas, ainda que nitidamente vistas como reprováveis.
Quando se aproxima de seus concorrentes em potencial, Man-soo enxerga também a dor do outro. Ele não é inerte ao sentimento, e menos ainda um psicopata, mas ao mesmo tempo em que tenta resistir, lembra-se do que há de mais caro e precioso em sua vida, justamente aquilo pelo qual sente que precisa lutar para manter como está.
A tensão é construída novamente em razão do cuidado da direção com o cenário ao redor. A imersão é proposta enquanto o diretor filma milimetricamente cada ambiente no qual o protagonista pretende atacar sua vítima, movimentando sua câmera pelo entorno dos espaços, detalhando a geografia, e o acompanhando cuidadosamente em cada passo dado na medida em que se prepara – e questiona internamente as próprias decisões.
Ao mesmo tempo, trabalha também cuidadosamente as consequências dos atos criminosos. A mise-en-scène, quando confrontado, seja pela polícia ou pela família, oferece uma possibilidade de ser desmascarado a qualquer momento, diante de uma câmera posicionada estrategicamente com ênfase na profundidade, destacando o que reside ao fundo da imagem; e a montagem cortando entre planos abertos e fechados, com ênfase nos personagens em cena, captando suas reações enquanto os diálogos evoluem. Sabemos, de antemão, a verdade, e conhecendo a casa da família, podemos inferir que as mentiras do personagem, para acobertar seus atos, não encontram respaldo em seu entorno – seja por um quadro na parede, um prêmio no armário, ou mesmo uma incoerência em sua versão dos supostos fatos.
E nisso, essa jornada começa a também surtir consequências para dentro da própria casa, em seus aspectos físicos e sociais, desenrolando um verdadeiro malabarismo para esconder as verdades por detrás de histórias familiares, e os valores defendidos no interior do seio familiar.
De um lado, há um sentimento recompensador na forma como o protagonista articula toda essa violência que acaba levando adiante em seu plano para conseguir um emprego, invertendo os papéis nesse tempo de desempregado, retribuindo, ao mundo e pessoalmente, em uma oportunidade específica, a humilhação que sofrera antes, e descontando suas frustrações em pessoas em situação igual, mas que com ela lidam de maneira diversa, se afundando na tristeza ou mesmo tentando se reinventar na vida – sem definitivamente um destino como esses, seja pelo desemprego ou pela morte trágica que estão prestes a sofrer. E o mais interessante é que pouco se vê de fato um aspecto gráfico no horror em cena, muito melhor trabalhado através do humor mórbido (a cena de luta e o acompanhamento da trilha definindo os sentimentos dos personagens é um dos muitos momentos icônicos), e do impacto das ações, do que efetivamente por meio de sangue em tela.
O próprio título No Other Choice, inclusive, reflete com precisão os dois momentos da narrativa – do desemprego, e do retorno a uma posição segura no mercado. Praticamente consagrando-se como um irmão de Parasita, em certa medida, pela abordagem e pelo eixo temático, o longa de Park Chan-wook novamente reafirma a versatilidade do cineasta, e o compromisso com um cinema formalmente complexo e elegante em seu domínio de câmera, manipulação da cena, e especialmente, construção de personagens e relações que se alternam constantemente, entre o perigo, a consciência, e a necessidade. Creio que será um filme muito lembrado e debatido no momento futuro, e uma reflexão tão cômica quanto amarga sobre um personagem que mata pelo capitalismo, enquanto o capitalismo mata tudo ao redor.
Avaliação: 5/5
No Other Choice (Idem, 2025)
Direção: Park Chan-wook
Roteiro: Park Chan-wook, Lee Kyoung-mi, Jahye Lee e Don McKellar, adaptado de Donald E. Westlake (livro)
Gênero: Thriller, Comédia, Drama
Origem: Coréia do Sul
Duração: 139 minutos (2h19)
49ª Mostra de São Paulo
Sinopse: Man-su, especialista em fabricação de papel com 25 anos de experiência, leva uma vida tão plena que pode dizer a si mesmo, com convicção: “Tenho tudo o que preciso”. Ao lado da esposa Miri, dos dois filhos e de seus cães, vive dias felizes, até ser surpreendido pela notícia de que foi demitido. O choque é devastador, mas, ainda assim, Man-su promete a si mesmo que encontrará um novo emprego em três meses pelo bem da família. Porém, a realidade se revela bem mais complicada. Apesar da determinação, ele passa mais de um ano pulando de entrevista em entrevista e se sustentando com um trabalho no comércio. Em pouco tempo, começa a correr o risco de perder a casa pela qual tanto lutou. No desespero, aparece de surpresa na Moon Paper para entregar seu currículo, mas acaba humilhado pelo gerente de linha Sun-chul. Convencido de que é mais qualificado do que qualquer candidato para trabalhar na empresa, Man-su toma uma decisão drástica: “Se não existe uma vaga para mim, vou ter que criá-la”.





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