49ª MOSTRA DE SP | O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho (Idem, 2025)
- Henrique Debski

- 4 de nov.
- 5 min de leitura
O Agente Secreto continua o debate de Retratos Fantasmas sobre memória e registro, em thriller político que faz do anticlímax uma reviravolta imersiva.

Ambientado em uma Recife do final dos anos 1970, desde os primeiros instantes de O Agente Secreto já nos é possível notar o estabelecimento de um diálogo profundo de Kleber Mendonça Filho com alguns dos temas que vem permeando seu cinema recente. Seu último longa, o documentário Retratos Fantasmas, discorreu, com e através da metalinguagem, sobre como a capital pernambucana, sua cidade natal, o inspirou desde o início da carreira, e o como também, aos poucos, abandonou sua cultura cinematográfica, dos cinemas de rua levados para o interior dos shopping centers, tornando-se puro comércio “de rede” e abandonando os circuitos alternativos em prol de obras puramente comerciais.
Versando acerca da memória, O Agente Secreto retoma essa linha temática, porém trabalhada sob outro prisma. Ao tratar do ponto de vista como uma reviravolta da narrativa, capaz de encerrá-la com peso agridoce de um destino trágico, o acompanhamento da história do protagonista Marcelo (ou Armando, seu nome verdadeiro) demora, e não economiza tempo, na maneira como o constrói no íntimo de seu drama pessoal. Apesar de nos afeiçoarmos a ele, fruto do excelente trabalho carismático de Wagner Moura, é fato que pouco sabemos sobre Armando, a não ser que está sendo perseguido.
O Regime Militar está a todo tempo presente no entorno daquelas vidas retratadas - e Kleber sempre o reforça, a partir da imagem do presidente exposta em praticamente todos os ambientes internos, em uma parede, acima de todos, cuja câmera faz questão de focar em determinadas oportunidades -, mas ao mesmo tempo encontra-se também sempre distante, ou desinteressado, articulado como mero instrumento dos antagonistas, na forma da corrupção estatal e do poder econômico, para cercar o personagem principal.
Aos poucos, e sem qualquer pressa, Kleber Mendonça Filho transforma aquela Recife também em uma personagem, e posiciona as peças em uma espécie de tabuleiro político. O jogo não é único, mas diversos, acontecendo simultaneamente, entre um Estado implicitamente violento e vigilante - vide toda a subtrama da perna, uma espécie de lenda urbana local, da época, que reforça a existência dos desaparecimentos forçados sem deixar rastros (o que ironicamente não foi bem o caso deste, convenhamos), e que reside nas entrelinhas da narrativa, com uma boa pitada de sarcasmo indireto na reta final -, e de pessoas refugiadas, de outros locais do mundo ou mesmo de dentro de seu próprio país, como se revela o caso de Armando, e lembrando daquele diálogo, veiculado inclusive no próprio trailer, proferido pela personagem de Maria Fernanda Cândido, sobre protegê-lo do Brasil.
Para além da reconstrução de época através de um excelente trabalho de direção de arte, e desse diálogo que firma com Retratos Fantasmas a partir de planos semelhantes (nos mesmos ambientes), baseando-se em imagens lá apresentadas, e também paralelos histórico-narrativos, O Agente Secreto trabalha com a ideia da memória em diferentes escopos e dimensões. Se para o protagonista a importância do acesso ao acervo de registro civil reside em sua busca por qualquer documento que prove a existência da mãe, suas escolhas, de certa maneira, surtem as consequências, a longo prazo, na vida do filho, que perpassa por uma situação muito semelhante no futuro. Da mesma maneira, a história da perna, ou do esquema no qual o protagonista encontra-se envolvido, que se relaciona a denúncia e percepção de corrupção da máquina pública para ganhos pessoais, fomento à interesses privados e ainda uma generosa dose de xenofobia (levemente ao estilo satirizado em Bacurau), estão registrados de maneiras esparsas e incompletas ao longo de documentos diversos, como parte da história de uma nação cujo passado se resume a meros fragmentos.
É de se imaginar a quantidade de outras informações que também se perderam ao redor do mundo, e com o passar dos anos. Talvez para muitos, seja algo que pouco interessa, mas a esses que se interessam por alguma razão, ficam à deriva de meros cacos informativos dos reais acontecimentos, como a memória de quem foi uma avó, um pai e as razões que levaram a seus fins perdidas em meio ao desgaste do tempo.
E na contramão de um thriller político convencional, o filme de Kléber Mendonça Filho, enquanto um quebra-cabeças que lentamente se resolve na conexão entre passado e presente, rompe com a obviedade ao construir seu clímax, na verdade, através de situações anticlimáticas, da mesma forma que se registram as memórias de seu protagonista, e dos acontecimentos ao seu entorno, investigadas por uma estudante universitária transcrevendo conteúdos obtidos no arquivo da faculdade. Quando tudo se conecta, já no terço final, a montagem assinada por Matheus Farias e Eduardo Serrano explora as consequências do passado sem a ele retornar, em um sabor agridoce ao espectador, é verdade, mas tal como o foi, também, aos personagens envolvidos.
O que talvez em um primeiro momento possa soar decepcionante, depois, após reflexões, passa a fazer sentido dentro de tudo aquilo que o filme trabalhou no decorrer de suas quase três horas de duração, de maneira muito bem amarrada. É uma jogada arriscada, mas muito fidedigna a toda sua discussão sobre a memória e as lacunas deixadas pelo registro, que ultrapassa o protagonista, e à própria tela de cinema, para chegar a nós, espectadores.
Muito fiel a suas filosofias e valores pessoais, O Agente Secreto é um verdadeiro objeto de diálogo ao cinema de seu diretor, seja pela forma como constrói uma atmosfera setentista magistral, ou pela maneira como abraça sua cidade, seu passado, o próprio cinema e o poder da arte - e, consequentemente, suas próprias memórias, e filmes anteriores -, sob a clima de uma época tensa ao Brasil, de muitas lutas pessoais e conjuntas, e que trata da Ditadura em seus movimentos reflexos indiretos, voltados mais ao resgate da memória e do cinema como recurso para tanto. Dentro de um thriller, experimenta também com o anticlímax, a fantasia e o terror para ilustrar traços de regionalismo, e faz com que a Recife dos dias de hoje retorne, nem que por um breve período de tempo, aos conturbados anos 70.
Por fim, deixo aqui um destaque final ao “achado” de Kleber Mendonça com a atriz Tânia Maria, na pele de Dona Sebastiana, que começou a carreira aos 72 anos, e provou versatilidade com humor, em uma personagem sofrida, porém forte, assim como a todos os refugiados que abriga em sua residência - seus poucos minutos de tela ecoam, de certa maneira, ao longo de toda a obra.
Avaliação: 5/5
O Agente Secreto (Idem, 2025)
Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Gênero: Thriller, Drama
Origem: Brasil, França, Paises Baixos, Alemanha
Duração: 126 minutos (2h06)
49ª Mostra de São Paulo
Sinopse: Brasil, 1977. Marcelo é um especialista em tecnologia de pouco mais de 40 anos que está em rota de fuga. Ele chega ao Recife durante a semana do Carnaval, na esperança de reencontrar o filho, mas logo percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que ele procura.





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