49ª MOSTRA DE SP | O Filho de Mil Homens, de Daniel Rezende (Idem, 2025)
- Henrique Debski

- 30 de out.
- 4 min de leitura
Superando os desafios da adaptação, Daniel Rezende faz de O Filho de Mil Homens um drama fantástico sensível sobre empatia e a família que escolhemos.

Muitos falavam, e ainda falam, sobre a complexidade da literatura de Valter Hugo Mãe, e a dificuldade que seria adaptar uma obra como O Filho de Mil Homens para as telas do cinema. O próprio idealizador do projeto, Daniel Rezende, comentou, antes o início da sessão na première do filme, na Cinemateca Brasileira, durante a 49ª Mostra de São Paulo, sobre a exigência de uma certa dose de coragem, e até a quantidade de vezes que ouviu sobre ser o livro “inadaptável”.
Infelizmente, não posso comentar acerca do processo e da qualidade de adaptação em si, sobre ser fiel ao espírito ou não, visto que desconheço a base, mas, enquanto um primeiro contato com a história, da qual nada sabia antes de entrar no filme, destaco que a impressão foi muito positiva. Não que eu desconfiasse do trabalho de Rezende, desde sempre um cineasta muito competente – ao que certamente se deve parte do sucesso da obra –, e já fisgou minha atenção “logo de cara” pela maneira como seus minutos iniciais parecem deixar uma dúvida acerca de qual lado a narrativa pretendia seguir.
São muitos personagens apresentados ao longo da projeção, todos residentes em uma pequena vila litorânea, em algum lugar do Brasil, de caráter bastante conservador, repleta de preconceitos, histórias trágicas e fofocas para todos os lados. Essas vidas que se cruzam coexistem ao longo dos anos, como linhas que eventualmente, ao se encontrar, passam a andar conjuntamente. A montagem de Marcelo Junqueira apresenta uma lógica muito interessante na maneira como busca intercalar o desenrolar das vidas desses personagens, com organicidade. Sem optar pela ordem cronológica, mas seguindo a ideia dos cruzamentos, o longa explora o pano de fundo de cada personagem, seu ambiente familiar, as dores que carregam consigo, e os fardos que possuem nas costas, em diferentes “capítulos”, que desembocam, em sua maioria, no tempo presente, ou ao menos em uma consequência para o momento atual.
É sobre um olhar de compaixão a essas pessoas de vidas sofridas que a direção de Rezende de maneira alguma transforma a dor em espetáculo, mas os observa de maneira calada, demonstrando enorme preocupação na forma como os constrói por meio da imagem. Enquanto, por vezes, a literatura pode soar poética, o diretor demonstra que existe uma enorme equivalência nesse sentido quando se trata do audiovisual. É através de rimas visuais para demonstrar a passagem do tempo, e na degradação dos ambientes pela decorrer dos anos que prova a maneira como conhece cada um de seus personagens de perto, e com eles se importa no rumo que tomam para a definição daquilo que entendem por família.
Esse formalismo adotado pela direção se alia a uma espécie de realismo mágico para, em um primeiro momento, situar a vila em um universo diferente, com toques fantasiosos e visualmente excêntricos, numa região desconhecida, mas nitidamente brasileira, onde o excesso de simetria torna-se um verdadeiro incômodo. É o sentido para o qual caminha a narrativa, de que a vida exageradamente “quadrada” aos poucos se torna exaustiva, e o pensamento direcionado em um único sentido, desprezando todos os demais ao entorno, nos leva a uma cegueira voluntária e nociva.
A família que O Filho de Mil Homens desenrola como sendo a verdadeira não necessariamente é aquela em que a pessoa nasce – uma escolha que não cabe a ela –, mas sim a que ela escolhe para pertencer. O mesmo vale para o amor, que não pode ser visto de uma forma única, como preto no branco e vice-versa, mas algo plural, e sempre aberto aos sentimentos mais íntimos. Nem todos os aprendizados são eternos, e por vezes um conceito que temos como consolidado pode muito bem ser desconstruído, e reaprendido sob outros prismas.
Ainda que carregado por tristezas, O Filho de Mil Homens demonstra um ar de otimismo em relação à vida em sociedade, e a possibilidade de todos conviverem em harmonia. É de um drama por vezes doloroso, mas com o olhar de compreensão lançado pela direção de Daniel Rezende torna-se uma obra empática à realidade que constrói, que crê no aprendizado e na possibilidade de desconstrução do ser humano frente às diferenças uns dos outros. Foi muito bonito assistir não só à première, mas ouvir Valter Hugo Mãe expressando alegria pelo lançamento do longa, o diretor sentindo-se realizado, e o excelente elenco, encabeçado por Rodrigo Santoro, empolgado com o trabalho em equipe realizado.
Avaliação: 4/5
O Filho de Mil Homens (Idem, 2025)
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Daniel Rezende, adaptado de Valter Hugo Mãe (livro)
Gênero: Drama
Origem: Brasil
Duração: 126 minutos (2h06)
49ª Mostra de São Paulo
Sinopse: Crisóstomo, um pescador de 40 anos que cresceu isolado da sociedade, sonha em ter um filho. Convencido de que “quando se sonha grande, a realidade aprende”, ele parte em busca de relações verdadeiras, inventa uma família atípica e reúne personagens tão excêntricos quanto humanos.





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