IX MORCE-GO VERMELHO | Alucina, de Javier Cutrona (Idem, 2025)
- Henrique Debski

- 13 de nov.
- 4 min de leitura
Utilizando-se da fantasia como forma de materializar a depressão, Alucina é um mergulho na mente de uma protagonista misteriosa, atormentada pelo passado, buscando cicatrizar as próprias feridas e compreender a si.

Enquanto alguns filmes encaram o espectador como mera testemunha dos fatos narrados, os visualizando de fora e apenas dependendo das manifestações e reações dos personagens para compreendê-los, sem uma grande preocupação com seu envolvimento naquele universo, outros preferem nos pegar pela mão para uma imersão profunda. A escolha por um ou por outro caminho depende exclusivamente da proposta de seu realizador, que pode gerar bons frutos ou maus resultados – como todo e qualquer filme.
Na trilha da imersão, a escolha do equatoriano Alucina é justamente de nos aprofundar na realidade de sua protagonista, uma pessoa de muitos traumas e sentimentos inacabados que carrega consigo, com memória frágil e lacunas que a incomodam profundamente, enquanto tenta esquecê-las e seguir sua vida. Os primeiros minutos do filme, inclusive, já são capazes de nos colocar a par desses sentimentos conflitantes da personagem, incomodada com o tocar do telefone, e sangrando enquanto se banha no chuveiro.
A fantasia, nesse sentido, se estabelece com o objetivo de explorar, através de alucinações, o estado de uma mente fragmentada, que dá ouvidos a formigas filosóficas, sob os dizeres “quem conhece a si, conhece o universo”; e perseguida por um enorme peixe, o qual aparece nos momentos de maior vulnerabilidade, com quem dialoga como se conversasse com a própria consciência.
Na pele de uma personagem extremamente metódica, de poucas palavras e misteriosa, ao viver Camila, Jessica Barahona em diversas oportunidades exprime o vazio e a solidão da protagonista através de um olhar vazio, à deriva e à imensidade de um mundo onde não encontra um lugar para chamar de casa, ou mesmo de “seu”. Sempre sentindo-se deslocada e atormentada pelo pouco que conhece de si, procura na pessoa de um entregador de pizza o amor que nunca sentira, e o conforto de alguém ao lado.
Mas mesmo que confortável, ainda trata-se de uma pessoa enigmática, repleta de marcas e um comportamento compreensivelmente imprevisível motivado por um trauma desconhecido. O desaparecimento do rapaz, e o reaparecimento de um ex-namorado abusivo, então, se tornam a chave para a investigação do passado, e justamente a compreensão de si, o que talvez a possa levar a outra visão sobre a realidade em que vive – e assim, quem sabe, “compreender o universo”.
Nessa jornada pelos confins da própria história e existência, o roteirista e diretor Javier Cutrona aproveita da montagem para ilustrar uma memória fragmentada, com apenas “flashes” de lembranças esparsas, momentos específicos e pessoas que a personagem mal reconhece – e tampouco o espectador. O desenrolar da narrativa torna tais momentos cada vez mais frequentes, não exatamente enquanto se lembra, mas sim conhece do passado, e das razões que a levaram àquele momento.
Com todas as oportunidades às mãos de chegar a uma solução exagerada, ao maior estilo conspiração, como fez Não Se Preocupe, Querida nessa intenção de questionar a realidade, Alucina acerta justamente quando busca, dentro dos limites possíveis em seu universo fantasioso, por um toque de realismo, ao restringir os elementos de ficção apenas à protagonista e sua relação com a realidade ao redor.
É de se imaginar, e posteriormente confirmar, que toda a fantasia existente no entorno de Camila serve apenas a si, enquanto reflexos na imagem de seu quadro de depressão, motivado por traumas que levaram a severos bloqueios emocionais ao longo da vida. A materialização do perigo se faz através da cor vermelha, especialmente nos momentos finais, onde a fotografia a enfatiza pelo excesso na iluminação, ou nas próprias criaturas fantásticas que a personagem enxerga – inclusive um dos grandes destaques do filme, na medida em que muito bem se integram àquele realismo mágico, e especialmente às interações da protagonista com o “peixe voador”, não apenas bem filmada como também pode contar com um excelente trabalho gráfico de efeitos visuais.
Alucina apenas derrapa, no entanto, quando sente a necessidade de se explicar em demasia nos instantes finais, abandonando parte de sua simbologia para dedicar um capítulo inteiro dentro de sua narrativa, já um tanto arrastada àquele ponto, para reconstruir partes de uma memória que se encontra em pedaços, e cujas peças já haviam sido distribuídas ao longo da projeção, e encaixadas em seus devidos lugares pelo espectador médio. Talvez sem isso até pudesse parecer um pouco vaga a ausência de uma “sequência completa de fatos”, mas tornaria a proposta de imersão mais realista diante da impossibilidade de reconstituir por completo uma memória durante tanto tempo incompleta e despedaçada. Ainda assim, a abstração mantém-se intacta como a parte mais interessante do filme, no qual Javier Cutrona se dedica a experimentar através de efeitos visuais e um simbolismo que fecha, adequadamente, toda a longa e dolorosa jornada de Camila.
Avaliação: 3.5/5
Alucina (Idem, 2025)
Direção: Javier Cutrona
Roteiro: Javier Cutrona
Gênero: Thriller, Drama
Origem: Equador
Duração: 100 minutos (1h40)
IX Festival Morce-GO Vermelho
Sinopse: Camila é uma jovem de 24 anos que sofre de amnésia: ela se lembra pouco ou quase nada de sua infância no litoral. Ela substituiu a dor e o vazio dessa perda por um mundo imaginário onde a percepção da realidade é única, e um peixe gigante é seu guardião. Camila foge de um passado nebuloso e, nessa fuga, conhece José, um entregador por quem se apaixona. Mas um dia José desaparece, e Camila precisa parar de fugir e ir em busca de seu amor perdido – e, nesse processo, reencontrar as peças faltantes de sua memória.





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